Você acha que é normal ter dores de cabeça muito fortes de vez em quando. A dor é tanta que fica difícil abrir os olhos, se mover, conversar com as pessoas e se concentrar. Quando você está estressado – e no caso das mulheres, no período menstrual – essas “super dores de cabeça” costumam acontecer mais. Mas geralmente, basta tomar um analgésico ou um cafezinho, e ela melhora.
Não há com o que se preocupar, certo?
Errado.
“Não é normal ter enxaqueca, mas a maioria das pessoas não sabe que sofre desse problema”, disse à BBC Brasil o neurologista sul-africano Andrew Blumenfeld, um dos maiores especialistas do tema no mundo, e diretor do Headache Center, na Califórnia.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a enxaqueca é a sexta doença mais incapacitante no mundo.
“Eles também afirmam que um dia vivido com enxaqueca é pior do que um dia na vida de um paraplégico, uma pessoa que tem demência ou que tem psicose.”
A definição da OMS é baseada no conceito geral de enxaqueca, mas ela pode ser episódica (que acontece só de vez em quando) e crônica (que ocorre com frequência).
Segundo Blumenfeld, as pessoas que já tem enxaqueca episódica são fortes candidatas a virar “enxaquecosos crônicos”, mas nem os médicos têm conseguido alertá-los para a situação.
“Os dados mostram que 80% dos pacientes que têm casos crônicos não são diagnosticados porque os médicos não conhecem bem os critérios de diagnóstico, eles só foram definidos nos últimos anos”, diz.
Por causa disso, a maior parte das pessoas acaba fazendo tratamento apenas nos momentos de dor, com remédios ou cafeína – o que, em excesso, pode até piorar a condição.
Tenho ou não tenho?
Há mais de cem tipos de dores de cabeça e todas elas são, de acordo com o neurologista, sintomas de algo que está acontecendo no corpo.
Mas a enxaqueca é considerada uma síndrome, que inclui a dor de cabeça, mas tem outras características específicas. A enxaqueca precisa obedecer a pelo menos dois destes quatro critérios:
– Dor em um só lado da cabeça (qualquer lado);
– Dor que lateja;
– Dor que piora com os movimentos;
– Dor que é está entre moderada e severa – ou entre 5 e 10 numa escala em que 10 é insuportável. “Nesta escala, 6 a 7 provavelmente significa que você não quer que as pessoas falem com você e não consegue trabalhar bem. Com 8, 9 ou 10 você provavelmente estará na cama vomitando”, explica Blumenfeld.
Além de dois dos critérios acima, também é preciso ter ao menos uma destas duas condições:
– Náusea;
– Sensibilidade à luz ou ao barulho.
Em alguns casos, os médicos também notam a ocorrência da aura – um fenômeno que começa como um ponto cego pequeno na sua visão, que se expande lentamente, durante 20 a 30 minutos.
“Também é comum que apareçam linhas em zique-zague ou um pouco de mudanças de brilho dentro desse ponto. Isso será visto em um lado só, mas por ambos os olhos. E se você fechar os olhos, ainda vai ver, porque é um efeito do cérebro, não é um problema com os olhos. Ele quer dizer que a parte do cérebro que interpreta o que você vê está desligando”, diz.
Crônica
Se você já percebeu que tem enxaqueca, mas descartou a possibilidade de que ela seja crônica porque só sofre de vez em quando, pense novamente.
A enxaqueca crônica corresponde a pelo menos 10% dos casos, afirma Blumenfeld. E, para caracterizá-la, não é preciso ter enxaquecas fortes sempre, nem todos os dias, nem há muito tempo.
“A principal diferença está no número de dias em que a pessoa convive com a dor de cabeça em um mês”, afirma Blumenfeld.
Um “diário de dores de cabeça” pode ser útil para saber se ela ainda é episódica ou pode ser crônica.
Caso uma pessoa sinta dor de cabeça em 15 ou mais dias do mês, 8 desses dias sejam de enxaqueca, e isso tenha acontecido pelo menos em três meses do ano, ela é uma forte candidata à enxaqueca crônica.
Mas o que significa exatamente ser um “enxaquecoso”?
“É como se o cérebro do enxaquecoso não tolerasse muitas mudanças. Então dormir uma hora a menos, comer fora de hora, levar uma fechada no trânsito podem ser gatilhos para a dor. Ele não suporta essas flutuações”, explica o neurologista brasileiro Marcelo Ciciarelli, da Sociedade Brasileira de Cefaleia, à BBC Brasil.
Este cérebro mais sensível tem menos capacidade de inibir a hiperexcitação que ativa as terminações nervosas que transmitem a sensação de dor para o sistema nervoso central.
Por isso é que até um toque de telefone insistente, um pequeno aborrecimento com alguém ou uma casa muito bagunçada podem ser motivo de enxaqueca.
Segundo a Academia Brasileira de Neurologia, 18% da população brasileira sofre com a enxaqueca. E de acordo com dados do Ministério da Saúde, ela atinge cerca de 5 a 25% das mulheres e 2 a 10% dos homens – principalmente as pessoas que estão entre 25 e 45 anos.
Stress e hormônios
Além desta hipersensibilidade, os cientistas também acreditam que a genética pode ter influência nas enxaquecas, assim como fatores externos. Nenhum deles, no entanto, é considerado o único responsável.
“O maior gatilho da enxaqueca, de longe, é o stress”, diz Blumenfeld. Mas o segundo gatilho mais forte atinge especialmente as mulheres – e é o que as torna mais vulneráveis.
“A queda dos níveis de estrogênio durante a menstruação ou a menopausa faz com que a frequência de dores de cabeça aumente. Mas se a mulher não tiver essa predisposição genética para a enxaqueca, isso não acontece.”
Os neurologistas, no entanto, ainda tentam entender exatamente a conexão da enxaqueca com doenças como depressão, ansiedade, insônia e até obesidade.
“Os dados nos mostram que elas estão ligadas, provavelmente pela genética”, afirma o sul-africano. “Entre os pacientes de enxaqueca crônica, ao menos 40% deles têm depressão e 30% têm ansiedade.”
Outro mistério ainda por desvendar é que tipo de mudanças a enxaqueca pode causar no cérebro. Os pesquisadores já observam, em exames de imagem dos pacientes, manchas na massa branca – as fibras mais profundas do órgão. Mas ainda não sabem o que exatamente elas significam.
“Também já foi observado, em ressonâncias em 3D, que pacientes com enxaqueca crônica têm o córtex cerebral mais grosso. E alguns estudos mostram diminuição de funções cognitivas, problemas de atenção e perda de memória recente”, explica Ciciarelli.
Remédios
Ao ler esta reportagem até aqui, você pode ter ficado mais tranquilo, se percebeu que a frequência das suas dores de cabeça e enxaquecas não é o suficiente para considerar que a doença já é crônica.
Mas isso não significa que dá para relaxar completamente. O uso em excesso de analgésicos, anti-inflamatórios e do café como antídoto para a dor de cabeça, dizem os médicos, cria um “efeito rebote”, e faz com que elas piorem com o tempo.
“Quando as pessoas tomam remédios ou café demais para isso, o corpo fica dependente e ela tem mais dores de cabeça sem essas substâncias no organismo. Por isso as pessoas têm dores de cabeça se ficarem sem café, por exemplo”, diz o neurologista.
“Mas a abstinência de cafeína dura só uma semana. Por isso, a solução para a dor não é tomar ainda mais café, e sim ‘desmamar’ dele.”
A quantidade segura para o uso de analgésicos contra a dor de cabeça, segundo os pesquisadores, é dois dias na semana. Já para o café, é recomendável ficar apenas em 200 ml por dia. Mas se você percebeu que tem que tomar remédios duas vezes por semana ou mais, vale considerar um tratamento preventivo, segundo Blumenfeld.
Para isso, é preciso ir a um especialista – com o seu “diário de dores de cabeça”, de preferência – para fazer o diagnóstico. Não deixe de anotar as dores leves, que você acredita serem “de tensão”. A quantidade de vezes em que elas aparecem importa.
Nervos
Blumenfeld é um dos responsáveis pelos estudos que fizeram com que a toxina botulínica A, o Botox, fosse aprovada para o tratamento da enxaqueca.
Ele alerta, no entanto, que a aplicação não pode ser feita de qualquer jeito. E é importante não cair na conversa de que o botox na testa vai, além de diminuir as rugas, melhorar a dor.
“Não é um cirurgião plástico nem um dermatologista que deve fazer isso, porque não é o mesmo tipo de aplicação cosmética do botox que as pessoas conhecem”, diz.
“Fazemos injeções muito específicas em vários pontos da cabeça, do pescoço e dos ombros.”
As injeções são feitas nas áreas dos nervos que alimentam os caminhos da dor no cérebro. Ao fazer isso, a toxina desliga estes nervos por 12 semanas a cada vez e começa a desregular a atividade no cérebro que leva à enxaqueca.
Fugir da enxaqueca crônica também pode envolver, segundo o neurologista, hábitos como ioga, exercícios aeróbicos e ajustes na dieta. Vale a pena diminuir o consumo de aspartame e de alimentos com grande concentração de glutamato monossódico, um realçador de sabor muito usado na comida industrializada.
Mas para facilitar o diagnóstico da doença, seu principal conselho é para os médicos: “a maneira como você faz a pergunta é muito importante. Se você pergunta a uma dona de casa ‘o que você faz quando tem dor de cabeça?’ ela vai responder ‘continuo fazendo o que tenho que fazer'”.
“Mas se perguntar o que ela precisaria fazer, na hora da dor, para que tudo ficasse perfeito, ela pode responder: ‘deitaria na cama com as luzes apagadas e em silêncio’. Aí as pistas começam a aparecer.”
FONTE: https://www.bbc.com/portuguese/geral-41204810